quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012
Berço do Lusitano passa dificuldades
Fundada em 1748, a coudelaria tem hoje dois milhões de euros em dívidas aos fornecedores e futuro incerto.
A seguir ao desmame os poldros de pelagem castanho-maduro vão para uma ilha no meio do Tejo. Livres até aos três anos. As éguas ficam na Coudelaria para serem inseminadas pelos garanhões.
Os melhores machos são trabalhados na Escola de Arte Equestre. E exibem-se. É a raça de cavalo Lusitano Real - a que o rei D. João V quis preservar e que, na nossa República, vive momentos negros.
A Fundação Alter Real - que através da Coudelaria de Alter do Chão é a responsável pela criação do cavalo lusitano e pela manutenção dos registos genealógicos da raça - "tem de ser saneada financeiramente", defende fonte conhecedora.
"Há problemas com fornecedores para o dia-a-dia e com pagamentos salariais dos 97 trabalhadores [mas não há ordenados em atraso]". Há cavalos por ferrar. E alimentação de 500 animais em risco.
O jornal Domingo apurou que a Fundação precisa de 1,3 milhões de euros por ano para funcionar.
Antes da criação da Fundação, em 2007, o Serviço Nacional Coudélico (depois extinto) tinha dois a três milhões de euros de financiamento do Estado.
Com a criação da Fundação passou para 700 mil. Pior: "O orçamento de Estado deste ano contempla zero", garante a mesma fonte. "Há risco para os cavalos porque os fornecedores têm pagamentos em atraso. O passivo ronda os dois milhões de euros".
O principal fornecedor de rações da Coudelaria de Alter do Chão garante que o abastecimento, para já, não está em risco. "Connosco está tudo regularizado. Fizemos um plano de acordo de pagamento que está a ser cumprido", explica João Arruda, da Intacol, escusando-se a revelar o valor da dívida e o número de meses em que esta foi fraccionada.
A situação extremou-se desde que em Dezembro último o presidente da Companhia das Lezírias, António de Sousa, doutorado em Gestão e docente da Universidade de Évora, que por inerência dirigia a Fundação, abandonou o cargo - desde Julho que avisava o Ministério da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território de que iria tomar essa decisão. "Havia um plano de reestruturação, viabilidade e sustentabilidade da Fundação Alter Real que, quanto a mim, se tivesse sido posto em prática a situação não estaria onde está" - explica António de Sousa, numa curta declaração que justifica também a razão do seu afastamento.
SEM ADMINISTRAÇÃO
Um mês e meio sem nova administração foi suficiente para o agravar da situação financeira: "Para passar cheques é preciso a assinatura do presidente e de mais um elemento da administração", diz uma fonte. "Até para pagar a conta da luz é preciso". Questionado, o Ministério da Agricultura apenas esclareceu que "dentro de dias tomará posse o novo presidente da Companhia das Lezírias, que por inerência presidirá também à Fundação Alter Real. Consideramos que esse será o momento oportuno para prestar todos os esclarecimentos relativos ao orçamento e funcionamento da mesma".
Fica também por saber o resultado de uma inspecção-geral encomendada pela tutela do anterior Governo.
Ao silêncio remeteu-se ainda o presidente da Câmara Municipal de Alter do Chão, Joviano Vitorino, que permaneceu no conselho de administração da Fundação - juntamente com Bernardo Alegria - após a saída do presidente.
António Pimentel Saraiva, 49 anos, licenciado em Agronomia e Agropecuária, foi o escolhido para ocupar o cargo vago. Já esteve à frente da Associação para a Protecção das Plantas e pertenceu à direcção do Sistema Integrado de Gestão de Resíduos em Agricultura. Sendo que ultimamente estava dividido entre Lisboa e Madrid, na direcção ibérica da Syngenta, uma empresa mundial focada no negócio agrícola.
"Não é um ‘boy' da política. Não o conheço pessoalmente, mas pelo que oiço dizer é um profissional com um certo prestígio" - afirma o arquitecto Arsénio Raposo Cordeiro, vice--presidente da Associação Portuguesa do Cavalo Puro Sangue Lusitano.
E apressa-se, no entanto, a ressalvar que "o cavalo lusitano só depende dos criadores, é uma coisa muito para lá destas instituições do Estado".
Entre os cerca de 400 criadores existem duas mil éguas em Portugal.
"O que está lá [na Coudelaria de Alter do Chão] à responsabilidade do Estado é o património genético da raça, que interessa manter e melhorar - e que têm tentado fazer, mas fazem-no sem meios. A outra função é fornecer reprodutores aos criadores, mas pouca gente ou ninguém os usa. As coudelarias do Estado entraram em grande decadência por falta de cuidado da tutela".
40 NASCIMENTOS
Começou a época da reprodução. Na Coudelaria de Alter do Chão, a eguada que pasta na Tapada do Arneiro, composta por 60 éguas de ventre, recolhe ao estábulo das 10h30 até às 15h30. Ainda só nasceram duas crias, mas a partir de agora os nascimentos são galopantes até meados de Maio, início de Junho. Nascem cerca de 40 por ano.
É tudo feito por inseminação artificial, respeitando um plano de emparelhamento. Escolhe-se o garanhão para cada égua, recorrendo a sémen fresco ou congelado.
"O objectivo é termos um poldro que seja melhor do que o pai e a mãe. Primeiro, para obtermos cavalos que sirvam para performances desportivas, como a ‘dressage', atrelagem, obstáculos. E, segundo, para fornecer a Escola Portuguesa de Arte Equestre", explica o engenheiro Francisco Beja, coordenador do departamento de coudelarias. "O nosso objectivo não é produzir cavalos para vender. Ainda que aqueles que não sirvam os nossos interesses, ou sejam um excedente, se vendam no nosso leilão anual, no dia 24 de Abril".
Dez mil euros vale um potro quando está ‘desbastado' (trabalhado).
Um garanhão pode ir aos 15 mil. E uma égua aos seis mil euros.
Já a venda de sémen, pode render entre mil e 1500 euros. França, Espanha, Inglaterra, Brasil, Alemanha e Holanda são países interessados nos cavalos lusitanos. "Oficialmente, a época de reprodução já começou e não há grandes pedidos de sémen. É o reflexo da crise" - explica Francisco Beja.
Os melhores cavalos ficam entregues à Escola Portuguesa de Arte Equestre, em Queluz, que tem por missão dar espectáculos para promover a raça. Acontece que a crise que afecta a Fundação Alter Real está também a pôr em risco uma das quatro melhores escolas do Mundo.
"Estamos na pior situação económica de sempre. Devemos aos fornecedores. E os ferradores já não querem ferrar os cavalos porque não se lhes paga atempadamente", lamenta o director, Filipe Graciosa.
"Tudo indica que a Escola passará para a gestão do Parque de Sintra Monte da Lua. O que me agrada, porque isto chegou a um desespero que não sabemos onde vai dar", adianta o director. "Mas sou da opinião de que deveríamos continuar com o cavalo de Alter do Chão".
Dos 50 e poucos cavalos da escola, 20 por cento não estão a ser trabalhados e os restantes fazem-no em más condições.
"Para nós, é vergonhoso", diz Filipe Graciosa. "Tenho momentos de alguma tristeza ao ver a falta de condições a que chegámos. A alimentação dos animais está em risco. É gravíssimo. Hoje em dia só somos fornecidos por consideração à minha pessoa", acrescenta.
Um dos cavalos que tem dado que falar é o ‘Rubi'. Irá aos Jogos Olímpicos de Londres, este ano. Filipe Graciosa explica que a proeza só foi possível graças ao facto de o cavalo ter sido vendido (por 110 mil euros) a Christine Jacoberger, que por sua vez o colocou à disposição do cavaleiro Gonçalo Carvalho, da Escola, para o trabalhar. "Senão a Escola não tinha condições para este percurso".
Outro dos negócios foi a venda de 50 por cento do ‘Viheste', por 110 mil euros, a um criador brasileiro, numa estratégia entre os dois países para difusão do cavalo lusitano, explica uma fonte conhecedora do negócio.
Manter tanto o ‘Rubi' como o ‘Viheste' custa por ano 50 a 60 mil euros. Justifica-se por isso a venda e os proprietários continuam a fornecer sémen à Coudelaria de Alter do Chão para reprodução ou para venda.
RAÇA VENCEDORA
‘Da Vinci' é filho do ‘Viheste'. Tem três anos. Acabou de chegar da ilha no Tejo e, na Coudelaria de Alter do Chão, vai passar pela unidade de desbaste, selecção e estágio. É aqui que se percebe se herdou os genes do pai. ‘Coronel', filho do ‘Rubi', herdou comprovadamente. É campeão nacional na categoria de cavalos de quatro anos.
O cavaleiro Duarte Nogueira, 46 anos, explica que o ‘Coronel' é "um cavalo que tem os três andamentos bons - passo, trote e galope -, muito nobre, sabe distinguir o que é trabalho do que é lazer. É muito inteligente". Com 27 anos de experiência e muitos prémios entregues à Coudelaria de Alter do Chão, ajuíza que em todos esses anos "os cavalos lusitanos têm evoluído bastante em termos de andamento, morfologia e temperamento. Eles têm evoluído tanto como a tecnologia: cada vez se fazem cavalos melhores".
É no picadeiro que se vê a garra de um cavalo. O ‘D. Elias' chegou há pouco tempo da ilha e numa das primeiras vezes que é montado, ao som da rádio M80, reage com nobreza.
No meio desta beleza natural alentejana, cerca de 25 mil visitantes anuais - cada bilhete de entrada custa até cinco euros - tomam contacto com a raça lusitana. Sendo que, várias fontes ouvidas, consideram que este espaço pode receber três vezes mais visitantes. As instalações - 16 hectares de telhados (equivalente a 16 campos de futebol) - foram recuperadas nos últimos 15 anos, num projecto do arquitecto Arsénio Raposo Cordeiro. "Aquele espaço só precisa é de gestão".
Todos os dias, por volta das 15h30, a bucólica paisagem começa a ser preenchida pelas éguas. As portas da cavalariça abrem-se e elas correm livres e ordeiras para os pastos, seguidas pelas crias.
Se o tempo fosse de chuva, os campos estariam mais verdejantes e haveria mais alimento - não confinando a alimentação futura às rações. Mas é ali também, entre azinheiras e ao luar, que nascem os poldros. Só na companhia das mães.
REPRODUÇÃO É SEMPRE POR INSEMINAÇÃO
‘Ruela' é uma égua impulsiva; ‘Beirão' é calmo. É o cruzamento perfeito. Mas eles nunca se chegam a conhecer. A veterinária responsável pela reprodução, Maria José Correia, encarrega-se de recolher o sémen do cavalo e de inseminá-lo de seguida na égua, de acordo com um plano de emparelhamento. Muitas vezes o sémen é congelado, como o de cavalos como o ‘Viheste', que está no Brasil, ou o ‘Rubi', que já não pertence à Coudelaria.
A veterinária justifica que, entre as vantagens da inseminação, o método evita a transmissão de doenças e agressão. Mas, principalmente, o sémen permite ser inseminado em várias éguas, congelado ou vendido.
Fonte: Correio da Manhã - Portugal
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