sábado, 31 de outubro de 2009

O cavalo Géricault - por José Carlos Ávila

Vou reproduzir aquí um texto de José Carlos Ávila que se encaixa perfeitamente até os dias de hoje.
São fatos reais ocorridos nos idos do século XIX.
A "Nova Escola" citada no texto, nada mais é do que a velha escola de La Guériniére de 1700!
É o que eu chamo de equitação de resultado, porque até hoje nenhuma outra mostrou maior eficácia.
Este texto mostra claramente que na relação homem-cavalo o que manda é a equitação e não o cavalo! É mais fácil culparmos os cavalos do que corrigirmos nossas falhas, para isso temos que ter humildade e paciência - coisa que eu menos vejo por aí....

Façam boa leitura!

Paris, por volta de 1840, conviveu com o que ficou conhecido, na França equestre, como a “controvérsia do século.”
De um lado, d’auristas, discípulos e seguidores de Antoine Cartier D’Aure, aristocrata mais conhecido como Conde D’Aure, opondo-se aos baucheristas, alunos e partidários de François Baucher, de origem mais humilde, criador de um “Novo Método” e que, para sustento próprio, dava demonstrações de equitação no Circo, frequentado pela nobreza da época.
D’Aure preconizava e praticava a equitação “ao ar livre” e foi, sem dúvida, o indutor do que hoje chamamos show jumping, enquanto que Baucher defendia e ensinava uma equitação em recintos fechados, nos picadeiros – a “Alta Escola”.
Conhecidos os opositores, vamos à história do cavalo do título:
Lord Seymour tinha, em suas cocheiras, um potro puro-sangue de 3 anos chamado Géricault, acuado e violento, a tal ponto que ninguém ficava em cima dele quando se defendia. Seu proprietário divulgou que oferecia o cavalo ao cavaleiro que fosse capaz de fazer a volta do Bosque de Boulogne sobre o seu dorso.
A proposta superexcitou a rivalidade entre os contendores. O primeiro a apresentar-se foi o visconde de Tournon, considerado o mais vigoroso aluno de D’Aure, que malogrou na sua tentativa. Como representante da “Nova Escola”, o conde Lancosme-Brèves tentou a prova e conseguiu. Os baucheristas festejaram ruidosamente, mas seus adversários alertaram, com toda razão, que o vencedor era um trânsfuga da velha escola, recentemente convertido à nova. E acrescentaram que, enquanto Tournon tentara sozinho, sem nenhuma ajuda, o conde fora rodeado por um grupo numeroso de cavaleiros amigos, cercando Géricault, logo após montado, apertando-o, empurrando-o para a frente, impedindo-o das reações que tão bem sabia usar.
Lord Seymour, sempre um grande “gozador”, mandou Géricault para o senhor de Brèves, que, publicamente, homenageou o seu Mestre, oferecendo-lhe o cavalo. Baucher, aceitando-o, anunciou que pretendia apresentá-lo no Circo, “dentro de, o mais tardar, seis semanas.” Desta vez, o valor do Novo Método e o renome do seu autor entrariam, realmente, em jogo.
O adestramento de Géricault apresentou, de fato, sérias dificuldades? Ninguém soube.
O cavalo era acuado e violento, mas não era mau, nem medroso. É pouco provável que ele tenha se rendido sem qualquer luta, depois da longa série de vitórias que havia imposto a seus sucessivos cavaleiros. Todavia, o tato e a destreza metódica do Mestre desempenharam, sem nenhuma dúvida, papel muito importante no resultado alcançado.
Soube-se, pelo pessoal do manège, que ele “trabalhava” Géricault várias vezes por dia: bem cedo, pela manhã e bem tarde, à noite; que ele mesmo o embridava e o ensilhava, sem admitir a presença de nenhum ajudante; e que, próximo do fim do adestramento, ele o havia montado, várias vezes, na pista do Circo, com os lustres acesos e ao som da orquestra.
Claro, os boatos mais extravagantes corriam no meio do público, sobretudo, no meio dos adversários, insinuando-se que Baucher fascinava Géricault, usando processos misteriosos e que o entorpecia com drogas soporíferas, e que também o privava de alimentação, de água e de sono.
Baucher deixava-os falar e prosseguia no seu trabalho.
Na noite de gala, o Circo estava repleto. A coorte dos fiéis a Baucher se apertava nas arquibancadas, destacando-se, dentre eles, o general Oudinot, o pintor Delacroix e o escritor Théophile Gautier. Frente a eles, estavam os chamados “Conservadores”, os antigos de Versalhes e do Manège Real de Paris. Estavam alinhados atrás de D’Aure, tendo a seu lado o visconde de Tournon, que ainda sentia suas quedas, e se apoiava numa bengala.
Enfim, Baucher fez sua entrada, num silêncio absoluto. Géricault avançou num passo um pouco precipitado, direito e firme, até o meio da pista, onde Baucher o manteve imóvel, durante um longo alto, de frente para o camarote dos Orléans, saudando a assistência, com seu bicórnio de plumas de galo.
Uma tempestade de aplausos, então, explodiu, iniciando a orquestra uma marcha guerreira.
Géricault tomou, obediente, a pista, demonstrando mais segurança do que receio e sem a menor tentativa de resistência. Baucher fê-lo executar, inicialmente, um trabalho simples, mas correto, e, pouco a pouco, Géricault distendeu suas andaduras, executou voltas, apoiou, sem se inquietar com o público ou com a música.
Altos curtos e partidas instantâneas interrompiam e restabeleciam a reprise ao galope, fluente e depois cadenciado, para a execução das piruetas. Duas mudanças de mão com mudanças de pé, executadas em galope amplo terminariam o trabalho. Para finalizar, Gericault fez, no centro da pista, um alto fulgurante, Baucher saudando confiante.
Uma ovação delirante acompanhou sua saída, executada com um recuar a passo contado, de majestosa amplitude.
Todos os fiéis admiradores do Mestre pareciam tomados de frenesi. Do outro lado, nas fileiras subitamente desfalcadas dos d’auristas, o visconde de Tournon, bengala sob o braço, aplaudia sem cessar, enquanto D’Aure imitava-o, discretamente.
Estava confirmado o sucesso da “Nova Escola”.


(Extraído do livro “Baucher et son École” , do General Albert Decarpentry)

* José Carlos Ávila está em atividade hípica ministrando aulas e montando no Clube Hípico de Santo Amaro